Antigamente, muito antigamente costumava-se dizer, pensar e valorizar as
pessoas pela qualidade daquilo que faziam. Se um cara é bom como artista,
ele faz trabalhos bons e justamente por isso ganha bem. não só como artista,
mas também como médico, advogado, cientista, professor, empresário, etc.
Nessa época exatamente, ilustrador era uma coisa rara, desconhecida, mas
muito valorizada. pois para ilustrar o cara precisava necessariamente ter um
grau de domínio de desenho e de técnicas que pessoas com uma formação não
muito sólida sequer tinham condições de pensar em entrar no mercado. Não
havia nenhum curso que uma pessoa saía “pronta” em seis meses ou um ano. na
verdade nem hoje isso acontece, mas pelo menos um monte de gente vende essa
idéia e um monte de gente compra essa idéia.
Algumas décadas atrás, acredito eu que no início dos anos 80, começou a
haver uma pequena distorção desse tipo de valor, aonde a qualidade já não
estava mais sendo um parâmetro para um profissional ser considerado ou
valorizado. talvez porque a concorrência e a excelência de algumas áreas do
conhecimento humano já tivessem atingido o ápice, como as artes, pois
podemos tranqüilamente dizer sem pestanejar que tudo o que poderia ter sido
estruturado, inventado ou transgredido foi feito até essa época.
Com a complexidade dos sistemas econômicos e sociais, acabou havendo uma
certa distância entre o talento e trabalho, fazendo com que fosse necessário
criar-se alguns “atalhos”, mecanismos ou pessoas que fizessem a ponte entre
as pessoas com capacidade e os empregos que necessitassem dessas pessoas.
Foi justamente nesse momento em que muita gente começou a perceber que ser é
muito complicado, exige estudo, aplicação talento, força de vontade e tempo.
Mas, desde que consiga-se desvincular a capacidade do reconhecimento, “ter”
acaba sendo muito mais fácil do que “ser”, sem contar que quando se “tem”
fica mais fácil provar aos outro de que você “é”.
Então, como numa coqueluche, foi aparecendo muita gente de talento e
qualidade “duvidosas” se destacando como “grandes”, e sempre que o trabalho
dessas pessoas eram colocados em cheque, respondia-se na maior cara lavada:
“é, mas o cara tá ficando rico!”.
Com o tempo, acabou virando uma verdadeira bagunça, pois dado a relação
qualidade = reconhecimento, ninguém mais seria capaz de dizer de maneira
objetiva se uma coisa é boa ou não, criando até mesmo o sofisma de que não
existe certo e errado, não existe bom e nem ruim, não existe nada.
Aliás, com essa história toda, começaram a aparecer as primeiras notícias de
pessoas que estavam enriquecendo porque todos cobravam 1000,00 por um
trabalho e o cara começou a cobrar 900,00 (o problema é que com o passar do
tempo o cara dos 900,00 começou a perder trabalho porque tinha gente mais
“esperta”, cobrando 10,00 pelo mesmo trabalho), a história de gente que
começou a ficar rico porque pagava uma comissão “por fora” para seus
clientes começou a não ser mais nem novidade e nem motivo de escândalo.
O problema é que a longo prazo um sistema baseado no “maricurejo” não se
sustenta numa sociedade de consumo, aonde as pessoas querem coisas novas,
interessantes e boas para gastarem o seu rico dinheirinho.
Foi então, que os donos da “bufunfa”, criadores de moda e formadores de
opinião (curiosamente grande parte deles os mesmo espertos que ficaram rico
fazendo coisas de qualidade duvidosa) resolveram esse problema através de
uma moda, aliás muito em moda ultimamente, capaz de trazer o talento para o
lado deles sem que o talento ganhe qualquer coisa, mas garantindo que o
dinheiro continue indo para quem sempre gostou de dinheiro, mas nunca gostou
de coisa boa: a fama.
Assim, hoje em dia já não vemos mais a tão manjada frase “é, mas o cara tá
ficando rico!”, pois ela andou sendo trocada pela frase “é, mas o cara é
famoso!”.
Como muita gente percebeu uma sujeira desmedida entre as pessoas que nadam
em dinheiro e resolveram não se vender, não se prostituir, não “sujar” a sua
arte com dinheiro, com consumismo, etc. Curiosamente, acabaram se tornando
as vítimas favoritas dos “donos do mundo”, pois a fama, a divulgação do seu
trabalho acabou, com o tempo se transformando em moeda forte para o nosso
sistema econômico.
E o que vemos hoje em dia? Um infinidade de clientes que exigem que o seu
fornecedor “vista a camisa”, isto é, que trabalhe de graça, que entre em
concorrência junto com ele fazendo trabalhos no risco que em 99,9999% dos
casos jamais serão pagos.
Atualmente, trabalhar por amor a arte ou compromisso com o trabalho é
tratado como uma grande virtude de um profissional, querer ganhar pelo
trabalho que se realiza é uma espécie de câncer, aonde aqueles que se
comportam dessa maneira são tratados como escória, gente indigna,
malfeitores, inimigos públicos.
É muito comum ver clientes se referindo a ilustradores que cobram pelo seu
trabalho como mercenários, pessoas sem caráter e sem escrúpulos.
Quantos de nós já não ouvimos clientes camaradas argumentando que se você
fizer um preço bacana vai poder ser visto pelo trabalho, que irá gerar outro
trabalho, e todo mundo acaba ganhando? Ou então, quem já não ouviu cliente
dizer que ao invés de pagar, ele coloca o seu nome nos créditos, para
compensar, assim o cliente estará divulgando o seu nome...
E quantos não caem nessa TODO SANTO DIA?
Um cliente que você cobre um valor abaixo daquilo que é justo irá pelo resto
da sua vida exigir de você que cobre aquele valor como o MÁXIMO para aquele
trabalho, e, o pior, é que quando você tentar cobrar o valor justo, ele irá
te acusar de explorador, dizendo que você não está mais sendo “parceiro”.
Sabe o que é pior ainda? Esse cliente que te paga pouco, ou nem te paga irá
te indicar para muitos outros amigos dele que precisam de um trou... quer
dizer, de um ilustrador com o seu mesmo perfil monetário, para ir sugar o
seu sangue.
Resumo da ópera: quem cobra pouco corre grande risco de ser cercado por
inúmeros clientes que exigirão que você continue cobrando pouco, e aquela
viajem que você sonhava fazer com a patroa para a Europa, ou aquele carro,
casa que você sempre sonhou vai continuar no sue sonho, pois com esses
clientes o futuro que te espera é continuar morando na casa dos pais,
andando de busão para cima e para baixo e no máximo fazer uma viagem com a
patroa para Águas de Lindóia cuidar da coluna toda arregaçada de tanto
desenhar a troco de banana uma vez a cada dez ou doze anos,, além de, se
você tiver sorte e trabalhar muito, ganhar uma tendinite crônica que te
obrigue a se aposentar em dez ou doze anos, isso sem ter juntado dinheiro
suficiente para viver de renda.
Ah, e seu cliente terá outros inúmeros desenhistas necessitando divulgação
do nome para continuar ganhando em cima, mas talvez um dia ele se lembre do
seu nome, quando estiver fazendo piada e contando vantagem de como era fácil
passar a perna em você.
Tudo isso, é o simples reflexo de um sistema baseado, atualmente na fama, no
sucesso, ser conhecido, famoso, virar estrela, ser capa da revista Caras,
ser entrevistado pelo TV Fama, ir no programa do Faustão ou do Gugu, poder
encoxar e menina da banheira (nem sei se isso existe ainda, ou se já
inventaram coisa pior), ser convidado para coquetéis em vernissage, poder
escrever em blog e ser lido, ter fã, uau! E a conta bancária que se dane.
Por causa disso todo mundo quer ser modelo, ator, apresentador de televisão,
ter uma coluna em algum jornal ou revista, fazer programa de rádio, virar
humorista, cantor. Ninguém mais quer ser cientista, professor, médico,
químico, engenheiro, esse pessoal não aparece.
É preciso que possamos perceber essas nuances para que não nos tornemos
vítimas desse tipo de prática, tão em voga nos tempos atuais.
Mas, eu estou começando, como eu vou conseguir meu espaço ao sol se não me
sujeitar a esse tipo de coisa?
Realmente tudo é mais difícil para quem está começando, mas não é porque
VOCÊ está começando que é difícil, isso é assim com TODOS, quem não estiver
preparado para passar pelas dificuldades de ser um iniciante, não estará
apto a ser um profissional maduro nunca.
Todo profissional passou por momentos difíceis, alguns momentos mais
difíceis, outros menos, mas todos indiscriminavelmente, isso faz parte de um
processo maior no que nós mesmos, pois depende da situação econômica do
país, do tipo de trabalho que você faz, do seus amadurecimento como
desenhista e como profissional, sua mentalidade, a demanda atual do mercado,
e assim por diante.
Vemos em situações como trabalhar de graça, em troca de divulgação, ou
outros esquemas miraculosos um atalho para não sofrermos tanto pelo processo
de seleção natural, amadurecimento profissional, desenvolvimento do nosso
potencial artístico, nos esquecendo que eles IRÃO ACONTECER, ou hoje, ou
algum dia. No entanto quando estamos começando temos condições físicas,
psicológicas e materiais que nos permitem passar por essas dificuldades,
sendo que se a gente passar pelo mesmo tipo de experiência alguns anos mais
tarde , as chances de fracassar será maior, pois você terá mais idade e será
naturalmente considerável mais descartável para o mercado, terá mais
dificuldades de adaptação, não terá o mesmo preparo físico, já terá
desgastes com outras coisas e não poderá se dar ao luxo de passar fome
estando casado e com filho para criar, por exemplo.
Sem contar que quando estamos começando firmamos as bases do nosso futuro,
escolhemos os passos que daremos talvez no resto da nossa vida, mas não
percebemos isso. Quanta gente se envereda por uma prática profissional que o
encarcere num rótulo que irá te perseguir par ao resto da vida? O briguento
continuará sendo briguento, mesmo se passar anos a fio sem discutir com
ninguém, o desenhista que só faz trabalho meia boca vai continuar sendo
considerado desenhista meia boca por anos a fio, ilustrador que cobra pouco
vai carregar esse rótulo por muito tempo ainda e, na hora que aparecer um
cliente ou trabalho grande, essa sua fama poderá até mesmo fazer com que
você perca o trabalho bom que apareceu.
Um empresa séria que precise de alguém para fazer um trabalho importante não
vai deixar o seu trabalho nas mãos de um ilustrador qualquer, vai exigir que
o ilustrador seja responsável e sério o suficiente para ela pelo menos se
sentir mais à vontade de deixar o seu trabalho em “boas mãos”. Somente
clientes “aventureiros” procuram ilustradores “aventureiros”.
Pode ser que essa moda de ser “famoso” ainda dure muito tempo, e pode ser
que ainda cause muito mais estragos, mas conhecermos um pouco como as coisas
funcionam pode nos dar uma vantagem na forma como nos posicionamos no
mercado e, quanto mais gente se colocar com uma postura mais séria, menos
aventureira, o mercado como um todo será forçado a se modificar por uma
pressão natural.
Mas para que isso aconteça precisamos evitar certas “armadilhas” e sabermos
nos defender. Uma delas é a armadilha de querer achar atalhos que nos levem
diretamente ao “sucesso”, sem que saibamos que o sucesso de verdade é aquele
fruto do nosso esforço. Se você chegou lá sem conquistas não venceu ninguém,
apenas levantou uma taça.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe seu recado, faça sua observação, crítica ou sugestão.